O texto que segue é a transcrição, revista e corrigida pelo autor, da conferência-debate pronunciada por André Comte-Sponville no dia 18 de outubro de 1999, no âmbito dos Lundis Philo (Segundas-feiras de Filosofia), no Piano’cktail, em Bouguenais (44340).
Vou falar, então, da felicidade... Confesso que, diante de tal tema, estou dividido entre dois sentimentos opostos. Primeiro, o sentimento da evidência, da banalidade mesmo: porque a felicidade, quase por definição, interessa a todo o mundo (lembrem-se de Pascal: “Todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... E esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar...”), e deveria interessar ainda mais ao filosofo. Tradicionalmente, historicamente, desde que os gregos inventaram a palavra e a coisa philosophia, todos sabem que a felicidade faz parte dos objetos privilegiados da reflexão filosófica, que é até um dos mais importantes e dos mais constantes. Vejam Sócrates ou Platão, Aristóteles ou Epicuro, Spinoza ou Kant, Diderot ou Alain... “Não é verdade que nós, homens, desejamos todos ser felizes?” A busca da felicidade é a coisa mais bem distribuída do mundo.
No entanto, ao mesmo tempo que esse sentimento de evidência ou de banalidade, tenho também o de certa singularidade, certa solidão, para não dizer de certa audácia: esse tema, que pertence desde há tanto à tradição filosófica, a maioria dos filósofos contemporâneos – digamos, os que dominaram a segunda metade do século XX – tinha quase completamente esquecido, como se de repente a felicidade houvesse deixado de ser um problema filosófico. Foi o que surpreendeu meus colegas, quando publiquei meu primeiro livro, o Traité du désespoir et de la béatitude... Parecia-lhes que eu reatava com velhas noções – a de felicidade, a da sabedoria... – que lhes soavam obsoletas, arcaicas, superadas, que eu filosofava, foi o que me disse na época meu ex-professor do curso preparatório para a École Normale Supérieure, como já não se fazia “havia séculos”, acrescentara ele, eu nunca soube se era um elogio ou uma crítica, “como já não se ousa fazer...” Em suma, eu estava com alguns séculos de atraso, e não deixaram de me chamar a atenção para isso... Serão quase sempre os mesmos que, alguns anos depois, me acusaram de seguir a onda (que onda? A da sabedoria, da filosofia antiga ou à antiga, da ética, da felicidade...). não mudei muito, porém, nem eles. O público é que mudou, e tanto melhor se eu tiver alguma coisa a ver com isso. Meu primeiro livro apareceu em 1984: parecia então, de fato, que eu estava com vários séculos de atraso... Depois veio o sucesso, pouco a pouco, e compreendi que eu estivera uns dez anos adiantado. Não me gabo. O que são dez anos para a filosofia? Mas também não tenho por que me envergonhar. A verdade é que o passado da filosofia está sempre diante de nós, que nunca terminaremos de explorá-lo, de compreendê-lo, de tentar prolongá-lo... E que foi por não ter medo de parecer superado ou atrasado que talvez, às vezes, eu tenha estado um pouco adiantado...
O fato é que meu ponto de partida, em filosofia, foi reatar com essa velha questão grega e filosófica, a questão da felicidade, da vida boa, da sabedoria. Não por gosto de remar contra a correnteza, mas porque eu tinha vontade de fazer filosofia como a faziam os mestres que eu apreciava e admirava, apesar de alguns deles terem morrido haviam vários séculos: os gregos primeiro, é claro, mas também Montaigne ou Descartes, Spinoza ou Alain... Nesse caminho, aliás, havia pelo menos um contemporâneo que me precedera: Marcel Conche. Depois outro, que, sem o seguir pessoalmente, me incentivava a explorá-lo: Louis Althusser. Segui o exemplo ou o conselho deles. Subi muito a montanha, na história da filosofia, para tentar avançar um pouco. Não tinha escolha: não teria podido filosofar de outro modo.
Em suma, quis reatar não apenas com a etimologia, que não passa de um pequeno aspecto da questão, mas com essa tradição filosófica que faz que a Philosophia, como diziam os gregos, seja, etimológica e conceitualmente, o amor à sabedoria, a busca da sabedoria, sabedoria que se reconhece de fato, para quem a atinge e segundo a quase totalidade dos autores, por uma certa qualidade de felicidade. Se a filosofia não nos ajuda a ser felizes, ou a ser menos infelizes, para que serve a filosofia?
O filósofo que mais me marcou, durante todos os meus anos de estudo, mais ainda que Spinoza, mais ainda que Marx ou Althusser, foi sem dúvida Epicuro, que descobri no curso preparatório e a quem mais tarde consagrei minha dissertação de mestrado. Fiz logo minha a belíssima definição que ele dava da filosofia. Lembrem-se da primeira aula de filosofia que vocês tiveram, vocês que chegaram ao último ano do segundo ciclo... Há uma pergunta que os professores de filosofia fazem quase inevitavelmente no colegial (eu próprio fui professor de filosofia por vários anos) na primeira aula do ano, no início do mês de setembro. É preciso explicar a adolescentes que nunca estudaram filosofia o que ela é, em outras palavras, o que eles vão estudar, à razão de oito, cinco ou três horas por semana, conforme o curso, durante todo um ano; o que é essa nova disciplina – nova para eles! – que se chama desde há tanto tempo filosofia... Contaram-me que um colega, na primeira aula do ano, à pergunta “O que é a filosofia?” respondia: “A filosofia é uma coisa extraordinária. Faz vinte anos que ensino e continuo sem saber o que é!” Se fosse verdade, eu acharia muito mais inquietante do que extraordinário. O que poderia valer uma disciplina intelectual que não fosse capaz nem sequer de se definir? Mas não creio que seja assim. A verdade é que é perfeitamente possível responder à pergunta “O que é a filosofia?” e até mesmo de várias maneiras diferentes – essa pluralidade mesma já é filosófica. Quanto a mim, adorei a resposta que Epicuro dava a essa pergunta. Ela assume devidamente a forma de uma definição: “A filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”. Gosto de tudo nessa definição. Gosto em primeiro lugar de que a filosofia seja uma “atividade”, energeia, e não apenas um sistema, uma especulação ou uma contemplação. Gosto de que ela seja feita por “discursos e raciocínios”, e não por visões, bons sentimentos ou êxtase. Gosto enfim de que ela nos proporcione “uma vida feliz”, e não apenas o saber e, menos ainda, o poder... Ou, em todo caso, de que ela tenda a nos proporcionar uma vida feliz. Porque, se eu tinha uma reserva a fazer, e tenho, a essa bela definição de Epicuro, é que não estou convencido de que tenhamos, nós, modernos, os meios de assumir o belo otimismo grego ou a bela confiança grega. Onde Epicuro escrevia que “a filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”, eu diria antes, mais modestamente, “que tende a nos proporcionar uma vida feliz”. Fora essa reserva, a definição, que data de vinte e três séculos atrás e que me ilumina já há quase trinta anos, continua me convindo. O que á a filosofia? Para dizê-lo com palavras que sejam minhas (mas vocês verão que minha definição está calcada na de Epicuro), responderei: a filosofia é uma prática discursiva (ela procede “por discursos e raciocínios”) que tem a vida por objeto, a razão por meio e a felicidade por fim. Trata-se de melhor para viver melhor.
A felicidade é a meta da filosofia. Ou, mais exatamente, a meta da filosofia é a sabedoria, portanto a felicidade – já que, mais uma vez, uma das idéias mais aceitas em toda a tradição filosófica, especialmente na tradição grega, é que se reconhece a sabedoria pela felicidade, em todo caso por certo tipo de felicidade. Porque, se o sábio é feliz, não é de uma maneira qualquer nem a um preço qualquer. Se a sabedoria é uma felicidade, não é uma felicidade qualquer! Não é, por exemplo, uma felicidade obtida à custa de drogas, ilusões ou diversões. Imaginem que nossos médicos inventem, nos anos futuros – alguns dizem que já inventaram, mas, tranquilizem-se, ainda há muito o que esperar –, um novo remédio, uma espécie de ansiolítico e antidepressivo absoluto, que seria ao mesmo tempo um tônico e um euforizante: a pílula da felicidade. Uma pilulazinha azul, cor-de-rosa ou verde, que bastaria tomar todas as manhãs para se sentir permanentemente (sem nenhum efeito secundário, sem viciar, sem dependência) num estado de completo bem-estar, de completa felicidade... Não digo que nos recusaríamos a experimentá-la, nem às vezes, quando a vida está mesmo muito difícil, até a usá-la com certa regularidade... Mas digo que quase todos nós nos recusaríamos a nos satisfazer com ela e que, em todo caso, nos recusaríamos de chamar de sabedoria essa felicidade que deveríamos a um remédio. A mesma coisa vale, claro, para uma felicidade que proviesse apenas de um sistema eficaz de ilusões, mentiras ou esquecimentos. Porque a felicidade que queremos, a felicidade que os gregos chamavam de sabedoria, aquela que é a meta da filosofia, é uma felicidade que não se obtém por meio de drogas, mentiras, ilusões, diversão, no sentido pascaliano do tempo; é uma felicidade que se obteria em certa relação com a verdade: uma verdadeira felicidade ou uma felicidade verdadeira.
O que é a sabedoria? É a felicidade na verdade, ou “a alegria que nasce da verdade”. Esta é a expressão que Santo Agostinho utiliza para definir a beatitude, a vida verdadeiramente feliz, em oposição a nossas pequenas felicidades, sempre mais ou menos factícias ou ilusórias. Sou sensível ao fato de que é a mesma palavra beatitude que Spinoza retomará, bem mais tarde, para designar a felicidade do sábio, a felicidade que não é a recompensa da virtude mas a própria virtude... a beatitude é a felicidade do sábio, em oposição às felicidades que nós, que não somos sábios, conhecemos comumente, ou, digamos, às nossas aparências de felicidade, que às vezes são alimentadas por drogas ou álcoois, muitas vezes por ilusões, diversão ou má-fé. Pequenas mentiras, pequenos derivativos, remedinhos, estimulantezinhos... Não sejamos severos demais. Nem sempre podemos dispensá-los. Mas a sabedoria é outra coisa. A sabedoria seria a felicidade na verdade.
A sabedoria? É uma felicidade verdadeira ou uma verdade feliz. Não façamos disso um absoluto, porém. Podemos ser mais ou menos sábios, do mesmo modo que podemos ser mais ou menos loucos. Digamos que a sabedoria aponta para uma direção: a do máximo de felicidade no máximo de lucidez.
Portanto a felicidade é a meta da filosofia. Para que serve filosofar? Serve para ser feliz, para ser mais feliz. Mas, se a felicidade é a meta da filosofia, não é sua norma. O que entendo por isso? A meta de uma atividade é aquilo a que ela tende; sua norma é aquilo a que ela se submete. Quando digo que a felicidade é a meta da filosofia mas não sua norma, quero dizer que não é porque uma idéia me faz feliz que devo pensá-la – porque muitas ilusões confortáveis me tornariam mais facilmente feliz do que várias verdades desagradáveis que conheço. Se devo pensar uma idéia, não é porque ela me faz feliz (senão a filosofia não passaria de uma versão sofisticada, e sofística, do método Coué: trata-se de pensar “positivo”, como se diz, em outras palavras ludibriar-se). Não, se devo pensar uma idéia é porque ela me parece verdadeira. A felicidade é a meta da filosofia mas não é a sua norma, porque a norma da filosofia é a verdade, pelo menos a verdade possível (porque nunca a conhecemos por inteiro, nem absolutamente, nem com total certeza), o que chamaria de bom grado, corrigindo Spinoza por Montaigne, a norma da idéia verdadeira dada ou possível. Trata-se de pensar não o que me torna feliz, mas o que me parece verdadeiro – e fica a meu encargo tentar encontrar, diante dessa verdade, seja ela triste ou angustiante, o máximo de felicidade possível. a felicidade é a meta; a verdade é o caminho ou a norma. Isso significa que, se o filósofo puder optar entre uma verdade e uma felicidade – felizmente, o problema nem sempre se coloca nesses termos, só às vezes –, se o filósofo puder entre uma verdade e uma felicidade, ele só será filósofo, ou só será digno de sê-lo, se optar pela verdade. Mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria.
Sobre este último ponto, nem todo o mundo estará de acordo. Sem dúvida vários de vocês, na sala, estarão se dizendo que, pensando bem, entre uma verdadeira tristeza e uma falsa alegria, vocês prefeririam a falsa alegria... Vários, mas não todos. Pois bem: dispomos aqui de uma excelente pedra de toque, para saber quem é filósofo na alma e quem não é. Toda definição de filosofia já acarreta uma filosofia. Do meu ponto de vista, só é verdadeiramente filósofo quem ama a felicidade, como todo mundo, mas ama mais ainda a verdade – só é filósofo quem prefere uma verdadeira tristeza a uma falsa alegria. Nesse sentido, muitos são filósofos sem ser profissionais da filosofia, e é melhor assim; e alguns são profissionais ou professores de filosofia sem que por isso sejam filósofos, e azar o deles.
O essencial é não mentir, e antes de mais nada não se mentir. Não se mentir sobre a vida, sobre nós mesmos, sobre a felicidade. E é porque eu gostaria de não mentir que adotei o projeto que se segue. Num primeiro tempo, tentarei compreender por que não somos felizes, ou tão pouco, ou tão mal, ou tão raramente: é o que chamarei de a felicidade malograda (no original, bonheur manqué), ou as armadilhas da esperança. Num segundo tempo, a fim de tentar sair dessa armadilha, exporei uma crítica da esperança, desembocando no que chamarei de a felicidade em ato. Enfim, num terceiro tempo, que poderia se chamar a felicidade desesperadamente, terminarei evocando o que poderia ser uma sabedoria do desespero, num sentido que especificarei e que seria também uma sabedoria da felicidade, da ação e do amor.
André Comte-Sponville
– A FELICIDADE DESESPERADAMENTE –
Tradução de Eduardo Brandão
– Martins Fontes Editora, São Paulo, 2001